Um Blog de dois erres, para todos os errantes.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

A representação d@s negr@s nas novelas


Por Rosa Estrada
Tenho pouco menos de três décadas de existência, por conta disso não tenho uma memória muito extensa sobre a representação d@s negr@s em novelas. Porém, desde muito cedo, algumas cenas transmitidas pela tevê me marcaram profundamente. Por exemplo, quando passou a versão mexicana da novela Carrossel pela primeira vez, eu era muito pequena, mas lembro muito bem de como o cordato e passivo Cirilo era maltratado pela rica e mimada Maria Joaquina. A única cena de que me recordo com toda a nitidez é de quando Cirilo adquiriu uma pomada que, acreditava ele, tinha o poder de deixá-lo branco e mais apresentável para Maria Joaquina. Uma representação segundo a qual tudo o que @s negr@s querem é ser aceit@s pelos brancos.
Maria Ceiça
Fui crescendo e verificando o quanto as novelas continuaram na sua representação d@s negr@s de maneira desrespeitosa: algumas de modo mais explícito, outras de forma mais escamoteada. Eu tinha uns onze anos quando a Vênus platinada transmitiu o folhetim Por Amor. Na trama, a personagem de Maria Ceiça (Márcia, foto) foi abandonada grávida pelo marido (Wilson), interpretado por Paulo César Grande, porque ele não desejava ter um filho negro e não fazia a menor questão de esconder isso. Contudo, o rapaz tentou se reaproximar ao descobrir que a filha nascera loira de olhos azuis, como ele. De início, Márcia dispensou o ex-marido, com toda a razão, porque estava muito claro para ela que Wilson havia mudado de ideia apenas porque sua filha não era negra. Porém, com o tempo Márcia foi cedendo e, no fim, ela e Wilson terminaram juntos e felizes para sempre, e o encaminhamento da trama deu a atender que o personagem de Paulo César Grande havia se redimido. Mas é muito fácil dizer que se redimiu do seu racismo, desde que sua filha com uma mulher negra não nasça com a pele escura e os cabelos crespos, néam...

Uma memória mais recente que eu tenho é da novela Da Cor do Pecado. Além do título horrendo, a trama também apresenta demonstrações gritantes de racismo. A estória de amor entre Preta (Taís Araújo) e Paco (Reynaldo Gianechini) não é bem vista pela mãe da moça, Lita (Solange Couto), pelo simples fato de Paco ser branco. Nesse sentido, a novela apresenta um discurso segundo o qual o racismo atualmente é algo que parte dos próprios negros, ignorando um histórico de exploração e uma cultura que ainda ataca cotidianamente a autoestima de toda uma etnia. Essa novela teve uma cena que beirou o nonsense, na qual Apolo (Gianechini) e Ulisses (Leonardo Brício) chegam a um bar em São Luís do Maranhão e são atacados por um grupo de nativos, simplesmente por serem turistas oriundos “do Sul”. Quer dizer, nem o mínimo de educação e civilidade os nordestinos parecem ter, segundo o autor da novela.
 Viver a Vida foi a primeira novela global em horário nobre cuja protagonista era negra, novamente interpretada por Taís Araújo. A Helena de Taís Araújo era rica e bem-sucedida, mas tem uma irmã (Sandra, de Aparecida Petrowki) que vai morar no morro com o namorado bandido, também negro, invariavelmente. Eu acho impressionante que nessas novelas os personagens negros parecem ter impulsos incontroláveis, que fatalmente os acabam levando a assumir os comportamentos que uma cultura racista espera deles. O namorado de Sandra, Bené (Marcelo Melo, ao lado, com Sandra), é negro, mora no morro e, seguindo o script, é bandido. Só que eu não me lembro quais eram os crimes que ele cometia. Sério. Eu só me lembro de Bené correndo para lá e pra cá, fugindo, e os personagens em torno dele mencionando a todo tempo o quanto era alta a sua periculosidade, apesar de as infrações do rapaz não terem ficado claras ao telespectador. Recordo-me, obviamente, de como foi excessivamente trágico o seu fim, brutalmente assassinado na frente da namorada.  
Mas, voltando à Helena, ela é negra, rica, bem-sucedida, mas acredito que foi um truque do autor, pois em nenhum momento Taís Araújo protagonizou realmente essa novela. Afinal, a personagem nem tinha uma história consistente, que desse fôlego à trama. Nesse sentido, foi fácil para Alline Moraes ofuscar Taís Araújo com sua Luciana, a moça que fica tetraplégica num acidente. Afinal, toda a estória foi conduzida para emocionar o telespectador com a trajetória de superação da mocinha branca, rica e amada pelos pais (em detrimento das irmãs, um horror), deixando Helena totalmente apagada no folhetim. Viver a vida também teve uma cena lamentável, em que a personagem de Taís Araújo se sente culpada pelo acidente de Luciana, ajoelha-se na frente da mãe dela (Lília Cabral), pedindo perdão, e recebe um tapa na cara. Eu considero essa cena completamente dispensável na estória, pois o que aconteceu na novela, resumidamente, foi o seguinte: Helena e Luciana eram modelos e estavam fazendo um trabalho juntas em alguma parte do mundo. Aí Helena briga com Luciana e a manda ir para algum lugar de ônibus, ao invés de permitir que a moça a acompanhasse em seu carro. Só que, no tal ônibus, Luciana sofre o acidente que a deixa tetraplégica. Minha pergunta é: como Helena ia adivinhar que Luciana ia sofrer o acidente? Assim, parece óbvio que Helena não teve nenhuma culpa, certo? Errado, na opinião de Tereza, a fidalga branca que é a mãe de Luciana. Então, Tereza vai à casa de Helena para jogar na cara dela a responsabilidade pelo que aconteceu à sua filha. Se eu fosse Helena, eu ia lamentar o acidente, mas deixar bem claro que eu não tenho bola de cristal e que eu jamais poderia imaginar que tamanha desgraça iria acontecer a Luciana. Depois, mandaria Tereza ir catar coquinho, e até chamaria a polícia se fosse preciso. Mas não. Tudo o que Helena faz é assumir a subserviência inerente à sua cor (na pena do autor da novela) e pedir perdão de joelhos. Em troca, recebe um tapa na cara. Uma mensagem bem explícita de que @s negr@s que “não sabem o seu lugar” acarretam desgraças aos brancos ricos, esses seres angelicais de sangue azul que viviam muito felizes até que @s negr@s tiveram a ousadia de ocupar espaços no mundo que não fossem os previamente dedicados a eles (a cozinha, o prostíbulo, os presídios). Ver a cena aqui.

Recentemente, Taís Araújo protagonizou outra novela, Cheias de Charme. Porém, dentre as empreguetes, era a única negra e também a única que falava errado e que não tinha nenhuma outra ambição na vida, a não ser continuar vivendo sua vida de empreguete. A Rosário de Leandra Leal queria ser cantora, a Cida de Isabelle Drummond planejava estudar jornalismo. Entretanto, a Penha de Taís Araújo não tinha um sonho, não visava nenhuma outra perspectiva na vida que não fosse continuar servindo a alguma patroa branca e “bondosa”.
Lado a Lado apresenta algum mérito ao contar com um número bem maior que o habitual de personagens negros, compondo perfis mais variados. No entanto, ainda peca por mostrar os brancos como salvadores d@s negr@s. A Isabel de Camila Pitanga tem características muito interessantes: é honesta, decidida, forte e cativante. Porém, só conseguiu se estabilizar na vida graças ao beneplácito de mulheres brancas: Madame Besançon (Beatriz Segall), Diva (Maria Padilha), Laura (Marjorie Estiano), Madame Dorleac (Maria Fernanda Cândido). É claro que o gênero as une, mas o recorte de raça e de classe tem especificidades que não podem de forma alguma ser desconsideradas. Temos que ter em mente que todos os avanços que os movimentos sociais tiveram, seja de mulheres, de negros, etc., foram conseguidos graças a muita luta e pressão junto à sociedade, e não devido à generosidade de algum representante bonzinho dos grupos dominantes.
 Mesmo com suas qualidades, Lado a Lado ainda é um avanço muito tímido rumo ao combate à depreciação d@s negr@s na mídia, sobretudo porque a Globo insiste em manter no ar personagens como Adelaide de Zorra Total, cuja única função é ridicularizar de uma só tacada vários grupos socialmente discriminados: é pobre, mulher e negra.